SOBRE A ABERTURA DE MERCADO
No contexto da liberalização do mercado de energia em curso no Brasil, com a redução gradativa do Ambiente de Contratação Regulado (ACR) e crescimento acelerado do Ambiente de Contratação Livre (ACL), é essencial a análise da estruturação dos mercados elétricos e seu enquadramento regulatório. A experiência de diversos países indica que a liberalização do mercado de energia contribuiu para consolidar um ambiente de negócios mais estável, reduzindo riscos e atraindo investimentos, essenciais para estimular o desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, os desafios e transformações estruturais impulsionados pela transição energética (integração das fontes renováveis e eletrificação dos processos produtivos, serviços e mobilidade) demandarão novas diretrizes regulatórias para os agentes econômicos. Neste sentido, os desenhos de mercado são vetores fundamentais para internalizar estas tendências e a experiência internacional indica que os mercados liberalizados são uma referência da dinâmica disruptiva em curso no setor elétrico global.
No Brasil, a liberalização ocorreu em três grandes fases. A primeira, nos anos 1990, focou na privatização das distribuidoras, impulsionada por uma grave crise fiscal. A segunda fase, iniciada em 2004, introduziu o modelo de dois ambientes: o ACR (Ambiente de Contratação Regulada) e o ACL (Ambiente de Contratação Livre), com a criação da CCEE e contratos regulados por leilões. A terceira fase, mais recente, contempla a modernização do setor com foco na abertura de mercado para os consumidores cativos, notadamente os de baixa tensão, promovendo ajustes regulatórios para garantir a viabilidade dessa transição de forma segura e eficiente.
Leia mais sobre o assunto no texto de discussão (TDSE) “A Agenda para Liberalização do Mercado de Energia Elétrica no Brasil: Convergências e Divergências às Melhores Práticas Internacionais“.
O modelo atual do setor elétrico brasileiro é caracterizado pela coexistência de dois ambientes distintos: o Ambiente de Contratação Regulada (ACR), onde os consumidores são atendidos exclusivamente pelas distribuidoras, e o Ambiente de Contratação Livre (ACL), no qual consumidores firmam contratos bilaterais com comercializadoras. Essa dualidade gera uma série de ineficiências e desequilíbrios, principalmente por conta dos subsídios cruzados que oneram os consumidores cativos. Esses consumidores acabam pagando tarifas mais altas, que incluem a remuneração de fontes de energia mais caras e o financiamento de encargos para políticas públicas. Tal fenômeno vem ocorrendo de forma desproporcional e sem controle ao longo do tempo, o que aumenta ainda mais a desigualdade econômica do sistema elétrico.
Leia mais sobre o assunto no artigo “Questões concorrenciais para abertura do mercado de energia elétrica“.
A abertura de mercado viabiliza uma série de benefícios para o setor elétrico, dentre as quais são destacados: melhores incentivos ao controle de custos de construção e operação da capacidade de energia; fomento à inserção de fontes renováveis de geração e novas tecnologias operacionais; incentivos aos operadores de rede para manutenção de níveis adequados de prestação de serviço; e transferência dos riscos de escolha tecnológica, custos de construção e falhas operacionais para os agentes econômicos, preservando os consumidores, etc.
Para que a liberalização do mercado elétrico de baixa tensão se concretize de forma efetiva, é necessário empoderar os consumidores cativos, permitindo que tenham plena liberdade de escolha em relação ao fornecedor de energia elétrica. Atualmente, o marco regulatório permite que apenas os consumidores no mercado livre possam firmar contratos livremente com as empresas comercializadoras, enquanto os consumidores cativos permanecem vinculados às distribuidoras. Essa configuração gera iniquidades, já que os consumidores cativos acabam arcando com tarifas mais elevadas devido a subsídios cruzados e ineficiências sistêmicas. Portanto, a liberalização exige medidas que permitam ao consumidor exercer seu papel de agente ativo no mercado, com base em informação, transparência e acesso facilitado a novos contratos.
Leia mais sobre o assunto no artigo “Condicionantes para liberalização do mercado elétrico de baixa tensão“.
Apesar das vantagens previstas, existem diversos obstáculos a serem superados para que a liberalização total do mercado se torne realidade. Um dos principais desafios é a inércia dos próprios consumidores, isto é, a propensão a não reagirem ou reagirem pouco aos estímulos do novo mercado. Isso pode acontecer visto que os consumidores, especialmente os de baixa tensão, muitas vezes não estão suficientemente informados ou motivados a buscar novas opções contratuais. Além disso, há falhas de mercado significativas, como a assimetria de informação entre consumidores e comercializadoras, e o poder de mercado excessivo de empresas incumbentes, que pode comprometer a formação de um ambiente competitivo saudável. Outro obstáculo relevante é o risco de concentração de mercado nas mãos de empresas incumbentes. Esses fatores exigem a intervenção do regulador para garantir equilíbrio e proteção aos consumidores e assegurar uma concorrência saudável sob um novo desenho de mercado.
Leia mais sobre o assunto nos artigos “Condicionantes para liberalização do mercado elétrico de baixa tensão” e “Questões concorrenciais para abertura do mercado de energia elétrica“.
Para que o consumidor possa exercer plenamente sua liberdade de escolha no mercado livre, é necessário promover seu empoderamento por meio de três eixos principais: o acesso a informações claras e comparáveis entre as diferentes opções contratuais; a capacidade de analisar as melhores ofertas disponíveis, com base em seu perfil de consumo e estilo de vida; e a possibilidade de agir sobre essas escolhas de maneira simples e sem barreiras. Isso inclui, por exemplo, a criação de plataformas de comparação de tarifas, a padronização das faturas, a eliminação de multas em caso de troca de fornecedor e a implantação de sistemas de compartilhamento de dados seguros e transparentes, nos moldes do Open Banking, denominado no setor como Open Energy.
Leia mais sobre o assunto nos artigos “Condicionantes para liberalização do mercado elétrico de baixa tensão” e “Questões concorrenciais para abertura do mercado de energia elétrica“.
SOBRE A PESQUISA
A análise das experiências de reforma do setor elétrico de diversos países mostra que a abertura do mercado de energia contribuiu para a conformação de um ambiente de negócios mais estável, com menos riscos e mais investimentos — fatores fundamentais para impulsionar o desenvolvimento econômico e social. A experiência de países da OCDE, como Reino Unido, Portugal e Espanha, mostra que a introdução de competição no varejo pode promover eficiência, incentivar a inovação e ampliar a liberdade de escolha dos consumidores. Ao mesmo tempo, essas experiências evidenciam a importância de marcos regulatórios sólidos, que mitiguem falhas de mercado como a assimetria de informações, o poder de incumbentes e a exclusão de consumidores vulneráveis. Além disso, práticas como a separação entre atividades de rede e comercialização, transparência tarifária, uso de medidores inteligentes e implementação de sistemas de dados abertos são elementos recorrentes nas reformas bem-sucedidas e que devem ser considerados no desenho do modelo brasileiro. Assim, examinar o que deu certo — e o que fracassou — em outros países permite ao Brasil realizar uma transição mais segura, eficiente e inclusiva, adaptando-se aos desafios estruturais e sociais do seu próprio sistema elétrico.
Leia mais sobre o assunto no texto de discussão (TDSE) “A Agenda para Liberalização do Mercado de Energia Elétrica no Brasil: Convergências e Divergências às Melhores Práticas Internacionais“.
No contexto internacional, sobretudo europeu, o processo de liberalização do mercado de energia elétrica teve início no final da década de 1980, com o Reino Unido como pioneiro. A lógica por trás dessa transformação foi a necessidade de tornar a cadeia produtiva do setor mais competitiva, superando o modelo tradicional de empresas verticalmente integradas, geralmente estatais. Essa mudança implicou a separação dos segmentos de geração, transmissão, distribuição e comercialização, com inserção de concorrência nos segmentos de geração e varejo. A reforma também envolveu a criação de agências reguladoras e operadores independentes, bem como a introdução de mecanismos de mercado, como leilões e mercados spot, para garantir maior eficiência econômica e serviços com melhor qualidade para os consumidores.
Os indicadores Product Market Regulation (PMR) são parâmetros desenvolvidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para medir a posição do arcabouço regulatório de um país ante as melhores práticas internacionais. A OCDE, a esse respeito, aponta que boas práticas regulatórias são promotoras da concorrência e geram externalidades positivas, que vão desde aumento da eficiência, ganhos de bem-estar social e redução do custo de capital.
As melhores práticas internacionais, analisadas por meio dos indicadores PMR da OCDE, recomendam a separação entre atividades de rede e comercialização, liberdade de escolha do fornecedor para todos os consumidores, e transparência nos preços e tarifas. Países como Reino Unido, Portugal e Espanha atingiram alto grau de liberalização, com grande participação do consumidor na escolha de seus fornecedores e serviços diferenciados. Além disso, destaca-se a importância da atuação do Estado como regulador e planejador, sobretudo em setores de monopólio natural como transmissão e distribuição.
ASSUNTOS EM PAUTA
CONSULTA PÚBLICA Nº 007/2025
A Consulta Pública nº 007/2025 da ANEEL é uma iniciativa que visa colher contribuições da sociedade para aprimorar a regulamentação dos serviços de distribuição de energia elétrica no contexto da abertura do mercado livre para todos os consumidores do Grupo A, ou seja, aqueles conectados em média e alta tensão. Essa consulta pública está inserida no esforço de modernização do setor elétrico brasileiro e busca facilitar a migração desses consumidores para o Ambiente de Contratação Livre (ACL), promovendo maior competitividade, liberdade de escolha e eficiência econômica. A CP esteve aberta para contribuições entre 20 de fevereiro e 7 de abril de 2025.
Acesse aqui a contribuição enviada pelo GESEL à CP nº 007/2025.
Entre os principais temas tratados pela CP 007/2025 estão a simplificação do processo de migração, permitindo que consumidores formalizem sua entrada no mercado livre diretamente com a distribuidora, sem a necessidade de denúncia prévia do contrato regulado; a criação do modelo de Open Energy, que permitirá aos consumidores acessarem e compartilharem seus dados de consumo com agentes do mercado livre, mediante consentimento, incentivando a transparência e a inovação; e a proposição de medidas para evitar práticas anticoncorrenciais, como o impedimento do compartilhamento de marca, infraestrutura e pessoal entre distribuidoras e comercializadoras do mesmo grupo econômico, com o objetivo de garantir uma concorrência justa e transparente.
Acesse aqui a contribuição enviada pelo GESEL à CP nº 007/2025.
MEDIDA PROVISÓRIA 1.300/2025
A proposta do Ministério de Minas e Energia (MME) – MP 1.300 – está estruturada em três eixos centrais: a reformulação da Tarifa Social de Energia Elétrica, a redistribuição e racionalização dos encargos e subsídios, e a abertura do mercado de energia elétrica para os consumidores de baixa tensão.
Leia mais sobre o assunto no artigo “A proposta do MME de reforma do setor elétrico brasileiro“.
O setor elétrico brasileiro sofre com uma dicotomia entre custos e tarifas no ambiente regulado (ACR). Embora o Brasil tenha uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo (com predominância das fontes renováveis), e custos de geração mais baixos em comparação com os pares internacionais, as tarifas no mercado regulado figuram entre as mais altas do mundo. Isso ocorre devido à existência de encargos elevados e subsídios cruzados, regressivos e discriminatórios que foram se acumulando ao longo do tempo. Esses custos recaíram desproporcionalmente sobre os consumidores cativos, tornando o sistema oneroso e ineficiente.
Leia mais sobre o assunto no artigo “A proposta do MME de reforma do setor elétrico brasileiro“.
A proposta prevê a abertura do mercado de baixa tensão em duas etapas: a partir de março de 2027 para consumidores industriais e comerciais, e a partir de março de 2028 para os demais consumidores. Esta liberalização representaria a possibilidade de migração de cerca de 90 milhões de unidades consumidoras, responsáveis por 60% do consumo nacional de energia elétrica. O GESEL pontua, entretanto, que a definição de datas fixas, sem o cumprimento prévio de condições estruturais e regulatórias, pode representar riscos significativos devido à complexidade do processo e à diversidade econômica e social do país.
Leia mais sobre o assunto no artigo “A proposta do MME de reforma do setor elétrico brasileiro“.
A proposta incorpora diversas recomendações da OCDE e da União Europeia. Entre elas estão a eliminação de subsídios cruzados entre categorias de consumidores, a exigência de transparência, não discriminação e limitação temporal das políticas públicas no setor, e a priorização de instrumentos regulatórios que não distorçam o mercado. Também há a retomada de diretrizes formuladas por órgãos técnicos do governo federal, como o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP), que já em 2019 recomendava o fim de subsídios a fontes incentivadas que se tornaram competitivas.
Leia mais sobre o assunto no artigo “A proposta do MME de reforma do setor elétrico brasileiro“.
Apesar de seus avanços, a proposta é considerada frágil ao estabelecer datas para a abertura do mercado de forma impositiva, sem condicionar a liberalização à superação de problemas estruturais, como a persistência de subsídios distorcivos e falhas regulatórias. A experiência internacional sugere que reformas desse tipo devem ser pautadas por critérios técnicos e requisitos de maturidade do mercado. Isso inclui a proteção dos consumidores vulneráveis, a promoção da concorrência efetiva e a eliminação de assimetrias entre agentes, evitando que a liberalização reproduza desigualdades ou comprometa a estabilidade do sistema.
Leia mais sobre o assunto no artigo “A proposta do MME de reforma do setor elétrico brasileiro“.